POR QUE ZÉ PELINTRA NÃO DEVERIA USAR CERVEJA NOS RITUAIS?

Zé Pelintra é espírito do povo, da rua, do cais, do morro e da boemia do início do século XX. Quando se fala em suas oferendas, bebidas e rituais, é fundamental compreender o contexto histórico e cultural de onde ele emerge. Zé Pelintra não nasceu nas elites urbanas, nem nos salões dourados da Belle Époque carioca. Ele nasceu nas dobras do povo, nos botequins do porto, nos terreiros de Catimbó e Jurema, e nos becos da Lapa, um espaço de cruzamento entre fé, música e sobrevivência.

Entender o que se bebia, onde e por quem, é compreender o mundo social que formou o arquétipo do malandro. E é justamente por isso que a cerveja não faz parte do fundamento de Zé Pelintra.

Durante todo o século XIX, o Brasil viveu uma transição entre o rural e o urbano. A produção de bebidas alcoólicas seguia o ritmo das classes sociais e da economia: havia a cachaça do povo, o vinho da colônia e o conhaque ou licor dos senhores.

A cachaça, produzida desde o século XVII, foi o primeiro destilado nacional e rapidamente se tornou a bebida do povo pobre, dos escravizados e dos libertos. Barata, forte e acessível, era consumida tanto como recreação quanto como remédio, desinfetante, afrodisíaco e instrumento ritual. Nas senzalas e nos quilombos, a pinga era usada em rezas, curas e oferendas; nos terreiros, era elemento de ligação com Exu e os espíritos da terra.

O vinho, por outro lado, era produto importado de Portugal, reservado às elites urbanas e ao uso religioso católico. Apenas no final do século XIX, com a chegada dos imigrantes italianos ao Sul do país, surgem as primeiras vinícolas nacionais. Ainda assim, o vinho continuava sendo símbolo de status, restrito a quem tinha renda e prestígio.

O conhaque e os licores também eram artigos caros, importados da França ou de Portugal, e associados à boa mesa da classe média nascente. Eram consumidos com parcimônia, servidos em cafés e casas elegantes, muitas vezes como sinal de distinção social.

A cerveja, por sua vez, era quase uma curiosidade exótica. As primeiras fábricas brasileiras — Bohemia (1853) em Petrópolis, Antarctica (1885) e Brahma (1888) em São Paulo — produziam em pequena escala, voltadas para o consumo burguês e urbano. O preço era alto, a distribuição limitada e o acesso do povo pobre praticamente inexistente. Até o início do século XX, cerveja era símbolo de refinamento, consumida por oficiais, comerciantes e frequentadores dos cafés centrais, não por trabalhadores de cais, domésticos ou moradores dos morros.

Em resumo: o vinho era para as mesas; o conhaque, para os cafés; e a cachaça, para o povo.

A cachaça era o sangue da rua. Presente em cada botequim, feira e roda de samba, ela unia o povo no calor da palavra e da partilha. Era vendida em garrafões, copos pequenos, latinhas ou diretamente da pipa[1]. O botequim, espaço de socialização popular, era o templo profano do homem pobre: ali se bebia, se conversava, se cantava e se aprendia a negociar com a vida.

Para o povo negro e mestiço recém-liberto, que ocupava os cortiços e os primeiros morros cariocas, a pinga era mais que bebida, era símbolo de dignidade e resistência. Enquanto o Estado os marginalizava e a elite os desprezava, o copo de cachaça era a comunhão do trabalhador, o brinde da sobrevivência. Era também a bebida dos marinheiros, estivadores, pedreiros e capoeiristas, todos habitantes do mundo que forjou o arquétipo do malandro.

A cerveja, por outro lado, sequer chegava aos becos. Era importada, cara e, na visão do povo, uma “bebida fraca”, sem o fogo que esquenta o peito nem a força que faz o corpo aguentar a lida. Na favela, não havia refrigeração, e a cerveja quente era desprezada. A pinga era viva, ardente e real.

Por isso, dizer que Zé Pelintra “bebe cerveja” é negar o lugar social de onde ele veio. Ele é espírito de quem nunca teve luxo, mas sempre teve honra; de quem bebia para firmar palavra, não para se embriagar. A pinga do malandro é fogo de fé, não anestesia.

Dentro da religiosidade afro-brasileira e do Catimbó nordestino, as bebidas alcoólicas possuem função litúrgica. Não se trata de vício, mas de instrumento mágico e vibracional. O álcool é fogo líquido, elemento de purificação e condução do axé.

A cachaça, nesse contexto, é associada ao Exu e às forças do movimento.
Ela desperta, abre os caminhos, limpa os fluidos densos e desperta o verbo. Quando um malandro bebe, não o faz por prazer terreno, mas para acender a chama do trabalho espiritual. O gesto de soprar a cachaça, de cruzá-la sobre o chão ou sobre o corpo, é ato de poder: é um pacto entre o humano e o encantado.

Já o vinho tinto representa o sangue, a comunhão e a oferenda. É bebida de transmutação, ligada aos rituais de mesa, à palavra e à sabedoria. O conhaque, por sua vez, é o refinamento do fogo, associado à elegância espiritual e ao domínio da energia. É o que Zé Pelintra da Lapa leva ao copo quando deseja se apresentar como doutor das ruas: o malandro das ruas, o malandro instruído, o homem que aprendeu a caminhar com honra entre o bar e o altar.

Beber, no contexto da malandragem, é ritual de consciência, não de fuga.
É o reconhecimento do fogo interno, a lembrança de que o corpo é templo e o verbo é arma. O malandro bebe com propósito, e o copo se torna instrumento de oferenda, jamais de vaidade.

Assim, o vinho, o conhaque e a cachaça não são simples líquidos: são veículos do axé. Cada um carrega um campo de vibração específico — o vinho purifica a alma; o conhaque desperta o poder interior; a cachaça acende o verbo da ação. Quando combinados com a palavra certa, tornam-se magias líquidas capazes de abrir caminhos, firmar trabalhos e despertar consciências.

Por isso, dizer que Zé Pelintra bebe é compreender que ele não se embriaga, mas firma sua força. O copo é o cálice do povo, o altar portátil do homem simples, e nele o espírito encontra a centelha do divino.

Tata Nganga Zelawapanzu


[1] Pipa, neste contexto, refere-se a um grande recipiente, geralmente de madeira, utilizado para armazenar e servir cachaça diretamente nos bares e botequins populares. O termo tem origem no francês pipe, que também significa barril.