A CARA DE MAU DO QUIMBANDEIRO
- Categoria: Reflexão
A cada dia mais e mais pessoas se interessam pela Quimbanda, entretanto muitas vem com o conceito errado do que de fato é o culto de Quimbanda. Acreditam, elas, que o quimbandeiro[1] é uma pessoa maligna, com cara e atitude de badboy, sempre pronto para a guerra e a confusão e que vive sempre no lado mais sombrio e maligno da existência. Esse é um conceito deturpado, errôneo e promulgado por mídia para muitos.
A Quimbanda é um sistema de feitiçaria e culto, onde louvamos e cultuamos Exu e Pombagira e aprendemos as artes da feitiçaria noturna com essas entidades espirituais divinas. O entendimento básico aqui é que a Quimbanda é culto – palavra importante para tudo – que muitas vezes é esquecido pela maioria. Um culto, em sua essência é uma prática religiosa ou espiritual que envolve rituais, cerimônias e atos de devoção voltados à adoração de uma divindade, entidade sobrenatural ou princípio sagrado.
Um Kimbanda – o termo correto para designar quem pratica a Quimbanda – é um indivíduo que é um sacerdote de suas próprias divindades pessoais – seus exus e pombagiras – e um manipulador das forças arcanas da feitiçaria noturna. O termo Kimbanda tradicionalmente do quimbundo designa um curandeiro, um feiticeiro e sábio que detinha as chaves da saúde e da doença, da dor e da benesse, da prudência e do ataque. Ele era consultado para orientações, prevenções e quando necessário – aí sim – demandas. As demandas não ocorriam a esmo, elas eram calculadas como justificadas ou equilibradas. Se você era atacado, seja por feitiço ou por uma energia negativa – que no sistema iorubá é chamado comumente (mas de forma insípida) de ajogun[2] o feiticeiro Kimbanda agira para a sua melhora[3]. Essa é uma forma de gerar novamente o equilíbrio entre as forças – moyo[4] – de um indivíduo.
O ataque sem sentido, simplesmente por cupidez, estupidez ou vaidade é uma arte praticada por outro tipo de feiticeiro, conhecidos como Ndoki[5] e Muloji[6].
Desta forma podemos inferir que os praticantes de artes negativas – pura e simplesmente – que não observam o equilíbrio não são Kimbandas no sentido estrito da palavra – curandeiros. Eles podem ser Ndoki e Muloji, mas não Kimbanda.
A Quimbanda brasileira é uma mistura de fundamentos, um caldeirão de culturas mexido e temperado ao estilo tupiniquim, que traz uma miríade de fusões e novas interpretações para a prática original da África, entretanto não se afasta completamente de seus fundamentos basilares de feitiçaria e de culto. O que hoje chamamos de Exu e Pombagira nesse nosso país, em África, junto aos povos de cultura banto, o termo usual era Ganga ou Nganga. Essa palavra carrega o mesmo significado do Kimbanda, como feiticeiro, sábio e curandeiro. Entretanto esse termo é mais aplicado para se referir a espíritos ancestrais que continuam atuando no mundo espiritual e material como guias, protetores e conselheiros.
O feiticeiro em vida (nganga) após o desencarne é elevado (deificado) a condição de um espírito ancestral altivo, mantendo suas funções de curador, conselheiro e feiticeiro, mas agora com mais abrangência em suas capacitações espirituais e mágicas. Isso preserva o sistema de ancestralidade – que é muito importante aos povos de origem banto e aos povos originários – onde os mais antigos voltam a terra por meio da mediunidade ou do oráculo dos feiticeiros ainda encarnados e continuam a prestar seu serviço a comunidade e aos que procuram ajuda. A memória desta forma e os ensinamentos acabam sendo mantidos pela comunidade e seus nomes passam a ser reverenciados como parte dos bakulu, que significam ancestrais.
Esses espíritos em terras brasileiras acabam assumindo – bem tardiamente – o termo Exu e Pombagira para seus nomes, pela popularização da figura do Orixá Exu dentro das práticas de cultura nagô-iorubá e a semelhança (apesar de tantas diferenças) entre esses ancestrais e as capacidades do Orixá Exu, como aquele que detém o poder dos caminhos e a comunicação entre o mundo espiritual e material.
Esse termo é um empréstimo linguístico e ao mesmo tempo uma ressignificação do que se tratará Exu. Em terras brasileiras ao falar em Exu, naturalmente nos vem a cabeça Tranca-Ruas, Marabô, Tiriri, Veludo e não o Orixá Exu em si.
Acho que até agora deu para entender como que o Kimbanda não pode ser considerado um badboy o tempo todo, sempre falando sobre venenos, sobre demandas, sobre como ele é poderoso e como ele irá causar adversidade na vida das pessoas, afinal a Kimbanda prega justamente o oposto, o equilíbrio cósmico e não a sua síntese anticósmica[7].
Dentro das Quimbanda do tronco tradicional – principalmente a vertente Nàgô e a vertente Mussurumim – podemos compreender que a busca é justamente pelo alinhamento cósmico. Sempre que vamos consultar a vida de uma pessoa, a primeira coisa que perguntamos é como está seu caminho espiritual. Nesse contexto, o caminho espiritual não representa – tão somente – a ligação com a religião e religiosidade, mas a sua essência espiritual, partindo do princípio de que somos espíritos em experiências materiais e não o oposto, definimos que tudo que afeta o espiritual, afetará o material e se o espiritual estiver em desequilíbrio, todo o restante estará também em desequilíbrio. Analisamos tanto essa questão dos caminhos espirituais, quanto a relação do indivíduo com sua árvore ancestral. Costumo dizer que o caminho espiritual reflete nossa essência, nossa verdade, uma que muitas vezes até nós mesmos não conseguimos enxergar.
A espiritualidade é como a caixa-mãe que abriga todas as outras dimensões da vida — trabalho, amor, relacionamentos, prosperidade, saúde, família e tantas mais. Se essa caixa maior estiver rachada, desalinhada ou negligenciada, inevitavelmente as caixas menores dentro dela também serão afetadas. Por isso, cuidar da espiritualidade não é um luxo, mas uma necessidade fundamental: ela sustenta o equilíbrio, a clareza e a vitalidade das demais áreas. Quando o centro está forte, o resto se organiza com mais harmonia.
Então há de se concordar em quem vive postando de mal, ensinando demandas a esmo, colocando sempre questões de desafeto em cima de tudo, buscando brigas e desavenças o tempo todo, não pode ser considerado alinhado com os princípios da Quimbanda, afinal ele está subvertendo a ordem cósmica.
Mas, você pode estar pensando nas refutações a isso, afinal a Quimbanda trabalha com demônios, a Quimbanda tem feitiços de ataque, a Quimbanda se manifesta em nome do Diabo e tudo isso que normalmente nós vemos associado a Quimbanda. De fato, é verdade, as Quimbandas muitas vezes – Nàgô e Malê principalmente – se alinham com a diabologia e a demonologia. Mas aqui o conceito é o mesmo cósmico que estamos tanto falando, mas que fica sempre escondido em cima de tanto teatro que outras práticas tentam promulgar e do desconhecimento e da incapacidade intelectual que muitos possuem em compreender as coisas além do seu próprio nariz.
Os demônios que associamos eles não são malignos, mas podem ser, afinal o monoteísmo judaico-cristão é quem sistematizou – a partir do masdeísmo – a ideia de um Deus de pura bondade, mas ao mesmo tempo completo e o todo, o alfa e o ômega. Só aqui já podemos ver uma incongruência teológica, afinal quem é o TODO, possui tudo e quem é Onisciente, Onipresente e Onipotente, tudo sabe, em tudo está e tudo pode, inclusive na maldade. Para tentar “consertar” esse deus quebrado, eles inventam a figura do diabo opositor, mas ainda assim limitado e minimizado.
Além disso, os demônios que vemos em vários grimórios, não são nada mais nada menos do que divindades – DEUSES – de outros povos que foram inferiorizados dentro da prática judaico-cristã monoteísta. Se estudarmos o Israel antes da invasão babilônica iremos encontrar um povo politeísta, as vezes com presença de monolatria, mas não monoteísta. Eles acreditavam em vários deuses (tanto que Isra-EL, carrega o nome do Deus Maior do panteão ugarítico), mas podiam render cultos monolátricos para um só deus. Todos esses deuses antigos, presentes desde épocas imemoriais, são rechaçados e muitas vezes corrompidos dentro da visão judaico-cristã, mas o que é preciso entender é que as divindades antigas possuíam uma dupla natureza, tanto benéfica, quanto maléfica, assim como é o próprio vento, a chuva, os raios e tudo que há na natureza.
Ao conclamarmos o Diabo como o Maioral de Todos os Infernos, evocamos um resgate ancestral dos cultos ctônicos — tradições que reverenciam as profundezas como origem e mistério. Nesse contexto, o inferno deixa de ser apenas um espaço de punição eterna e se revela como o berço primordial, o abrigo das almas no pós-vidas, situado nos orbes sublunares, onde repousam os mortos e germina o invisível. Essa concepção se alinha a antigas cosmologias como o Hades grego, o Irkalla sumério e acádio, o Duat egípcio, e o domínio de Mot na tradição ugarítica — todos reinos subterrâneos que guardam não apenas os mortos, mas também os segredos da existência.
O Diabo, em nossa cosmovisão, não é o antagonista absoluto das religiões dogmáticas, mas sim a própria expressão do Anima Mundi[8] — a alma viva e pulsante do mundo. Ele representa o princípio ctônico que permeia todas as coisas: a matéria, o desejo, o instinto, o saber oculto, o ciclo de morte e renascimento. Ao invés de ser visto como fonte de corrupção, o Diabo é o guardião dos mistérios telúricos, o fogo que anima a carne e desperta a consciência para além da moral dualista. Ele é o elo entre o visível e o invisível, entre o alto e o profundo, entre o espírito e o sangue. Reverenciá-lo é reconhecer que a alma do mundo não está apenas nas alturas celestes, mas também nas entranhas da terra, nos abismos férteis onde germina o poder da criação.
Desta forma acredito que muito se torna explicável e mais calmo no âmbito do entendimento. Um futuro iniciado me perguntou: “Como posso evocar um santo, como São Bento que manda a gente expulsar o diabo em sua súplica mais clássica, isso não colide com a própria Quimbanda?”
A resposta para isso não é tão simples, mas podemos dizer que: Não, não colide de forma nenhuma.
Devemos começar pensando que a Quimbanda não é uma religião dogmática, mas sim, uma cosmologia fluida, simbólica e profundamente estratégica. Os santos, quando evocados dentro da Quimbanda, não são necessariamente cultuados como figuras dogmáticas, mas como chaves espirituais, portais de força, nome de poder, detentores de nguzo que podem ser utilizados para abrir caminhos, proteger ou equilibrar energias.
No exemplo de São Bento, apesar dele mandar ir embora Satanás (Vade retro Satana!) não está afastando o Maioral de todos os Infernos, mas sim o que Satanás significa em sua essência do hebraíco śāṭān (שָּׂטָן), que significa o adversário ou opositor. Desta forma podemos estar mandando embora nossos inimigos ocultos ou visíveis, pois o Maioral de Todos os Infernos não será afastado por isso, pois ele não é a essência do mal puramente, mas sim uma força telúrica, ancestral, que rege os mistérios da terra, da carne, do espírito e da transformação. Lembre-se sempre que a Quimbanda não é dogmática, mas dialética, permitindo que o iniciado transite entre luz e sombras, entre ordem e caos, sem perder o eixo, pois está sempre buscando seu equilíbrio.
É justamente essa visão não dogmática que nos permite associar Exus, gangas, demônios, inquices, orixás, santos e divindades diversas em torno de uma única força central: Exu. Na Quimbanda, Exu não é apenas uma entidade — ele é o grande articulador cósmico, o manipulador do axé do mundo, aquele que conhece os caminhos, os atalhos, os desvios e os portais entre mundos.
Exu transita entre o alto e o baixo, entre o visível e o invisível, entre o sagrado e o profano. Ele molda o axé conforme a necessidade, a intenção e o momento. É por isso que, dentro da Quimbanda, podemos trabalhar com santos católicos, divindades africanas, espíritos ancestrais e forças telúricas — todos sob a regência de Exu, que não se limita por forma, nome ou origem, mas sim pela função espiritual que cada força pode exercer.
Exu é o ponto de convergência, o guardião da encruzilhada, o engenheiro do destino. Ele não apenas abre caminhos — ele reconfigura o mapa inteiro, conforme lhe é adequado, conforme o iniciado está pronto, conforme o axé está disponível.
Por tudo isso, é preciso compreender que a Quimbanda não é um teatro de sombras, mas uma ciência espiritual que lida com forças reais, ancestrais e cósmicas. Ela não se presta à caricatura do mal gratuito, nem à exibição de poder vazio. Ser Kimbanda é ser curador, é ser guardião dos mistérios, é saber quando agir e quando silenciar, quando demandar e quando curar.
A verdadeira Quimbanda é feita de equilíbrio, de sabedoria, de escuta profunda aos Exus e Pombagiras que nos guiam. É feita de respeito à ancestralidade, à terra, ao axé e ao destino. Não é para quem busca guerra por vaidade, mas para quem busca caminho por consciência.
Porque no fim, o que define um Kimbanda não é o quanto ele grita, mas o quanto ele compreende. Não é o quanto ele ataca, mas o quanto ele alinha. Não é o quanto ele se impõe, mas o quanto ele serve ao mistério.
E é nesse mistério que tudo começa — e tudo retorna.
Tata Nganga Zelawapanzu
Mestre de Quimbanda Nàgo e Mussurumim
Dirigente do Templo de Quimbanda Cova de Tiriri
[1] Em nossa família usamos o termo Kimbanda para definir quem é praticante de Quimbanda.
[2] Ajogun é um termo da cosmologia iorubá que designa entidades espirituais associadas a forças negativas ou desarmoniosas, como doença, morte, perda e conflito. Essas forças atuam como obstáculos ao destino humano e são vistas como parte do equilíbrio cósmico, podendo ser apaziguadas ou afastadas por meio de rituais e práticas religiosas.
[3] Podemos encontrar algo semelhante nos embates espirituais dos Pajés entre os povos originários.
[4] Moyo é uma palavra da língua quimbundo que significa “coração” ou “vida”. No contexto espiritual e filosófico das tradições bantas, moyo representa a energia vital que anima os seres vivos, sendo associado à alma, ao sopro divino e à força que conecta o indivíduo à comunidade e aos ancestrais.
[5] Ndoki é um termo de origem Banto, especialmente presente nas línguas quicongo e quimbundo, que designa uma figura espiritual associada à feitiçaria ou à manipulação de forças negativas. Pode se referir tanto a um feiticeiro quanto a um espírito perturbador, sendo geralmente relacionado a desequilíbrios espirituais, inveja ou quebra de harmonia na comunidade.
[6] Muloji é um termo de origem Banto, especialmente presente nas línguas quimbundo e quicongo, que designa uma pessoa que pratica feitiçaria ou manipula forças espirituais, geralmente com intenções negativas. Na cosmologia tradicional, o muloji é visto como alguém que rompe o equilíbrio espiritual da comunidade, podendo causar doenças, desentendimentos ou infortúnios por meio de ações ocultas ou rituais.
[7] Culto anticósmico é uma prática espiritual ou filosófica que se opõe radicalmente à ordem do cosmos — entendido como o conjunto de leis, estruturas e princípios que regem o universo e sustentam a criação. Diferente das religiões tradicionais que buscam harmonia com o mundo e com o divino, o culto anticósmico rejeita a existência como uma prisão imposta por um demiurgo ou força criadora inferior. Seus adeptos buscam a dissolução da realidade material e o retorno ao caos primordial, visto como fonte de liberdade espiritual absoluta. Essa visão é comum em correntes esotéricas como o satanismo anticósmico, o luciferianismo radical e certas vertentes gnósticas, onde o caos é reverenciado como potência libertadora e o cosmos como ilusão a ser transcendida.
[8] Anima Mundi, expressão latina que significa “alma do mundo”, é um conceito filosófico e esotérico que descreve uma força vital universal que permeia e anima toda a existência. Ao associar o Diabo a essa energia, propõe-se uma visão não dualista, onde o Diabo deixa de ser símbolo de queda ou maldade absoluta e passa a representar o princípio ctônico, telúrico e transformador que conecta espírito e matéria. Nessa leitura, ele é o guardião dos mistérios da terra, o impulso vital que move o mundo e a consciência que habita o invisível — uma manifestação profunda da própria alma cósmica.