O poder da calunga
- Categoria: Reflexão
Quando falamos sobre a Calunga, muitas vezes surge a ideia equivocada de que estamos falando apenas sobre a morte. No entanto, o mistério da Calunga é muito mais profundo do que o simples destino final. A Calunga, ou Kalunga, é o limiar entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Os Exus que atuam na Calunga não trabalham apenas nos cemitérios ou nas águas do mar: eles atuam em toda fronteira, em todo espaço de passagem entre os mundos. São os verdadeiros porteiros do além, os donos das chaves que abrem e fecham os véus.
Esse princípio do limiar aparece em diversas culturas. Hermes e Hécate na Grécia, Anúbis no Egito, Papa Legba no Vodu, Janus em Roma — todos são figuras que guardam as portas entre os mundos. Assim também são os Exus da Calunga: espíritos de fronteira, mensageiros entre o visível e o invisível, que caminham sobre o fio que separa a vida da morte.
Exu Tiriri da Calunga ensina que a Calunga é onde existe a morte — e como a morte está em tudo, esses espíritos estão em todos os lugares. Mas há algo fascinante neles: um magnetismo irresistível. São entidades que encantam, seduzem e deslumbram, não apenas pelo carisma, mas pelo poder do abismo — o poder da morte, o poder da Calunga.
Esses Exus carregam o grande poder da vida, a pulsão vital, aquilo que Freud chamou de Eros — o deus do amor e do desejo. Essa força não se limita à sexualidade; é o impulso de viver, de criar, de perpetuar. É o instinto que se opõe ao Thanatos, a pulsão de destruição e inexistência. Assim, os Exus da Calunga expressam a tensão entre Eros e Thanatos: são a presença viva da morte que inspira a vida.
Quando um Exu de Calunga se manifesta, ele desperta o que há de mais intenso no ser humano: a vontade de viver. Sua energia é erótica no sentido original — de movimento, de vitalidade, de prazer em existir. Essa força, quando irradiada, faz com que todos à sua volta sintam-se vivos, vibrantes, extasiados. É o mesmo êxtase presente nos antigos festivais dedicados a Dionísio e Baco, onde o frenesi e o prazer eram celebrações da própria vida.
A vida e a morte estão entrelaçadas. Eros e Thanatos dançam juntos no interior do ser humano. O impulso de viver e o desejo de se extinguir coexistem, revelando o paradoxo do existir. Não à toa, em francês, o orgasmo é chamado de la petite mort — “a pequena morte” —, o momento em que o corpo esgota a energia vital e se entrega ao vazio antes de renascer. No clímax, há criação e dissolução ao mesmo tempo: morrer por um instante para reviver com mais força.
Essa dualidade também aparece em outras tradições. No Vodu, o Baron Samedi e o Baron Cimetière expressam esse mesmo poder. Misturam morte, sexualidade e irreverência, tornando-se símbolos de sedução e mistério. Baron Samedi, com seu terno de enterro e rosto de caveira, é o senhor das encruzilhadas entre vida e morte, debochado e provocativo, principalmente no campo do desejo. Ao seu lado está Maman Brigitte, espírito feminino associado à deusa celta Brigit, representada como mulher branca, ruiva e sensual — expressão do poder feminino da morte e da paixão.
Esse abraço da morte é um convite sedutor, o mesmo que envolve figuras como vampiros e outros seres de magnetismo irresistível. Porque o que torna esses espíritos tão fortes é justamente essa mistura entre morte e desejo, entre eros e abismo. O sexo é vida, o prazer é criação, e o poder erótico pode ser transmutado em inspiração, criatividade e axé.
A Calunga é o ventre e o túmulo, o início e o fim, o beijo e o suspiro final. É o espelho do mistério onde Exu reina absoluto, unindo o que vive e o que morre em um mesmo sopro de poder.
Nguzo ê Quimbanda.


